sexta-feira, 19 de maio de 2017

Highway to heaven - Capítulo 1, Manual Prático de Direção

Em 1986 eu senti um carro pela primeira vez. Eu tinha dez anos na época, e era a primeira vez que eu tocava num carro, e, por Deus, como eu era fascinado por aqueles montes de metal que funcionavam juntos pra transportar cem vezes meu peso em cima de quatro rodas a setenta por hora. Meu vô tinha sua Brasília 77 e meu pai, um Opala enferrujado ano 68, onde ele me levava pro colégio e rebocava alguns carros por um extra. Nosso vizinho, que tinha uma certa grana, tinha uma caminhonete Rural que levava a esposa dele, a preta da casa e os cinco filhos, e um Corcel dos primeiros. E se você excluir um ou outro Fusca ou Brasília de coloração duvidosa, era só. Mas aí chegou aquele tal de Miller, do estrangeiro, e seu pai com um Maverick V6 automático, com motor de 110HP e um ronco de impor respeito. Ele tinha uma pintura preta, empossado em suas duas faixas brancas, que se uniam no imponente símbolo da Ford Motors. Uma primazia de carro, com tanta cera na capota, mas tanta cera, que você seria capaz de brincar de escorregador no capô daquele carro e se barbear no teto. Moravam duas casas pra cima na rua, um sobrado enorme, com grade, jardim e garagem, que comia as nossas casinhas coladinhas, nas quais nunca era a mesma pessoa que tinha o primeiro e o segundo andar.


Tudo começou a gente estava jogando bola um dia na rua, e a bola bateu sem querer no carro dele. E o pai dele veio puto de dentro de casa, tocou na minha casa e forçou meu pai a me mandar polir o carro. Só pelo maldito gosto do castigo, porque tinha tanta cera lá que a bola nem conseguiu riscar. Meu pai não fez absolutamente nada, a não ser me jogar de olho torto um balde e um paninho de polir. E lá fui eu, peguei a cera, e poli até escurecer. Cheguei em casa com os braços doídos. Meu pai veio conversar comigo.

“Moleque, o quê você pensa que ta fazendo?”
“Que foi pai?”
“Você sabe com quem tá se metendo?”
“Não, pai”
“...Porra. Entra em casa”
“Pai, eu queria ter um carro que nem o dele.”
“...”
“Que foi?”
“Filho, a gente não tem condição pra isso”
“Ah, às vezes vale a pena sonhar... sentir o vendo bater na cara por cima daquele motorzão no meio da estrada...”
“Pára de sonhar e vai dormir, que amanhã nós temos compromisso às4, e eu quero você acordado, vestido e de café tomado, me entendeu?”
“Sim senhor.”

E então meu pai me pegou às 4 da manhã do dia seguinte, me botou dentro do Opala, e dirigiu por uma hora até chegar no campo onde a gente jogava bola aos domingos pra dobrar os cruzeiros. Estava frio e um pouco escuro. Meu pai saiu do carro e caminhou uns 50 metros pra frente. Depois disso, me gritou, “Traz o carro pra cá”.

Eu girei a chave, puxei o afogador, dei a partida, exatamente como observava meu pai fazer. Um solavanco e o motor silenciou. “Denovo”. Por mais duas vezes, outros dois solavancos, e o motor parou totalmente. Ele então veio caminhando com cara de zangado até o carro, e eu esperei a surra.

Mas a surra não veio. Ele sentou no banco do carona, desengatou o carro, botou o cinto e começou a me explicar como tudo funcionava. Combustível, explosão, cilindro, embreagem, tanque, eixo. Me explicou o que era um carro de direção dianteira, um carro de direção traseira, um carro 4WD/AWD. Explicou o que era um eixo Cardã, como funcionava a transmissão, a embreagem, o que era torque e o significado dos HP do motor, o que significava um V6, um V8 e o que eram os malditos litros do motor, passou ao painel, me explicou a mecânica e do volante, a auto-elétrica, tudo desde o farol até o escapamento. Nunca tinha pisado numa faculdade (embora tenha terminado o Segundo Grau), mas mostrou-se o mais entendido professor de engenharia que eu já conheci.

Ele levou minha mão até o freio de mão e relaxou-o. Suavemente, ele girou a chave, puxou o afogador e deu a partida. Sem solavancos.“Não faça nada ainda”.

Ele disse, “Acelere um pouco. Sente o som do motor”. E eu ia apertar o acelerador, quando ele me disse pra ser calmo e sentir um pouco de cada vez. Um simples toque com a ponta dos dedos fez com que o motor Chevrolet de 80 cavalos cansados gritasse mais que chinês em briga de máfia.

“Paciência, meu filho... Relaxe o pé, vá com calma”

E eu tentei novamente. E ele roncou menos. “Engate a primeira”. Engatei, e o barulho continuou igual. “Agora, calmamente, você vai soltar a embreagem até sentir que ele tá andando”. E assim eu fiz. Com a mesma calma que aprendi a ter há cinco minutos, eu soltei o pedal. E quando o carro começou a sair do lugar levei um susto, mas um susto, que eu acabei soltando tudo de uma vez, e o carro deu um solavanco maior ainda. Meu pai entrou no pulo e saiu dele com a mesma expressão. Ele mandou que eu repetisse o processo sozinho, de uma vez. Eu desengatei o carro, puxei o freio de mão e desliguei. Em seguida, girei a chave no contato, puxei o afogador e dei a partida. Relaxei o freio de mão, engatei o carro e procurei o ponto certo do acelerador. Então, eu comecei a soltar a embreagem.

E o carro começou a andar. E o carro andou uns dez metros, quando meu pai mandou que eu soltasse totalmente a embreagem. Isso feito, comecei a apertar o acelerador. E o motor gritava. E meu pai dizia, “Filho, passa a segunda, vai!” e eu assim fiz. Eu e meu pai demos três voltas no campo de futebol, já eram sete da manhã, e fomos voltando pra casa. E eu passsei o caminho inteiro olhando pro céu azul aparentemente imóvel, enquanto meu pai trocava as marchas suavemente na estrada de terra que me levaria de volta à nossa casinha.

3 comentários:

Bruno Capelas disse...

Hahahahaha... isso aqui tá me cheirando a dezesseis. Mas porra , tá muito divertido. XD

Abração!

Anônimo disse...

Hm... Parece bom. Vamos esperar os próximos capítulos!
E adorei o "gritar mais que chinês em briga de máfia" xD
Só mais uma coisa... Por enquanto está ótimo e eu pessoalmente não notei nenhuma falha, mas toma cuidado porque você tem que ser fiel à época que você está narrando. Uma escorregada nesse sentido leva tudo por água abaixo.
Enfim, aguardarei.
Beeijo, saudades!

Anônimo disse...

Bom, muito bom, mas não excelente, você pode fazer melhor.De qualquer forma a melhora é evidente!!!Continue trabalhando.